No segundo turno das eleições, dia 28 de outubro de 2018, Jair Bolsonaro obteve 57,7 milhões de votos (39,1%); Fernando Haddad, 47 milhões (31,7%); abstenções, nulos e brancos, 42,4 milhões (28,5%). Logo, 89,4 milhões de brasileiros não votaram em Bolsonaro. Entretanto, de acordo com as regras do jogo, 57,7 milhões de brasileiros elegeram o presidente do Brasil, de 2019 a 2022, e decidiram também levar o povo brasileiro para um tempo de mais cortes em direitos sociais, mais devastação ambiental, mais discriminação etc., uma noite escura, um deserto. Entretanto, “o deserto é fértil”, já dizia o profeta Dom Hélder Câmara. Com Carlos Drumond de Andrade, pergunto: “E agora, José?” ‘Reflexão’, ‘coragem’ e ‘criatividade’ foram as três primeiras palavras que me vieram à mente após o resultado da eleição presidencial. É hora de refletir, ruminar, meditar e recolher as melhores lições sobre tudo o que está acontecendo no nosso querido Brasil com o povo, as igrejas, as pessoas, os biomas, a mãe terra, a irmã água e todos os seres vivos. É hora de coragem, de respirar fundo e manter a luta por todos os direitos, de cabeça erguida e com muito amor no coração. Não podemos deixar que os instigadores de violência nos façam violentos. Só o amor integral liberta. Ético e humano é respeitar a imensa diversidade cultural, religiosa e de orientação sexual, inclusive, e não abrir mão da luta por todos os direitos. É hora de criatividade, “é hora de revirar …”, conforme canta Zé Vicente, o cantor e compositor das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
Segundo o livro do Êxodo, na Bíblia, após amargar uns 500 anos de escravidão no Egito, debaixo do imperialismo dos faraós, o povo oprimido e superexplorado de várias culturas, diante de um Decreto do Faraó que mandava matar os meninos ao nascer, o povo se uniu, se organizou e partiu para conquistar terra e liberdade: um sonho bom e invencível. No entanto, no início da caminhada, o povo se viu encurralado pelo Mar Vermelho à frente, atrás a tropa de choque dos faraós e montanhas dos dois lados. Nesse apuro, as mulheres parteiras – Séfora e Fua -, Míriam e Moisés convidaram o povo a dar as mãos e bradaram: “Coragem! Um passo à frente!” O Mar Vermelho se abriu e o povo seguiu a caminhada para conquistar a terra prometida e sem males.
O Deus da vida e Jesus Cristo revolucionário estão vivos em todos os/as injustiçados/as, conspirando conosco e em nós. Sejamos “simples como as pombas, porém espertos como as serpentes” (Mateus 10,16). “O véu do tempo se rasgou” (Mateus 27,51). Falsos cristãos revelaram sua hipocrisia e cinismo. O Deus da vida e Jesus Cristo devem estar indignados por verem os nomes de Deus e de Jesus sendo usado e abusado com fins eleitoreiros e para pavimentar ascensão ao poder. Entretanto, é nos momentos de escuridão e de dificuldade que o Deus da vida existente no humano e em todos os seres vivos se manifesta. “Misericórdia, quero; holocausto, não” (Mateus 9,13), bradava Jesus Cristo. E acrescentamos: tortura, não; ditadura, não! Democracia, sim! Aos que foram seduzidos por fake news (notícias falsas) e por pastores e sacerdotes falsos, promotores da privatização da fé cristã, digo: “Pai, perdoai-lhes, eles não sabem o que fizeram” (Lc 23,34). Arrependerão assim que cair a venda da vista. Atenção! Aprovado pela maioria nas urnas em 28 de outubro de 2018, o sistema do capital está recheado de contradições e inconsistências, é um gigante que parece invencível, mas é vencível, sim, porque tem pés de barro.
Segundo a perspectiva profética da Bíblia, todo momento de opressão e de superexploração é momento de Kairós, palavra da língua grega que significa “tempo propício e favorável” para compreendermos os sinais da ação solidária e libertadora do Deus da vida nas entranhas da história. É nos momentos mais dramáticos, quando parece não haver saída, sem luz no fim do túnel, que podem acontecer as mais inspiradoras e libertadoras transformações. Por exemplo, na ditadura militar-civil-empresarial de 1964, momento de grande repressão no Brasil, nasceram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as pastorais sociais em um cenário de Igreja acumpliciada com a classe dominante e manietada pela ideologia dominante que chegou a fazer as lastimáveis Marchas com Deus, pela Propriedade e contra o Comunismo.
Sandro Gallazzi, biblista do CEBI e da CPT, afirma que “todas as grandes realizações nasceram em períodos de maior escuridão”. No momento em que um faraó do imperialismo egípcio anunciou um Decreto-Lei duro, uma espécie de Ato Institucional, mandando matar todos os meninos que viessem a nascer, nasceu ali o Êxodo, um grande movimento religioso e popular de resistência que levou o povo a se libertar da escravidão no Egito. Foi o momento do Exílio babilônico que fez produzir as partes mais lindas e revolucionárias do Primeiro Testamento da Bíblia. E eram tempos dramáticos em que muitos foram mortos e massacrados. Foi também durante as agruras do Imperialismo Romano, na periferia da Palestina, que nasceu o menino Jesus de Nazaré, que foi compreendido e reverenciado como Cristo, enviado de Deus para testemunhar um caminho de libertação integral.
O padre e monge Marcelo Barros nos aponta um rumo: “Resta-nos agora voltar às bases e preparar as células de resistência (os cenáculos de resistência) na linha das minorias abraâmicas e da reorganização da esperança”. Sigamos, irmanados/as e abraçados/as, na luta pela democracia e por todos os direitos fundamentais, acendendo na luta a esperança, construindo “de baixo para cima e de dentro para fora”, uma sociedade do bem-viver com sustentabilidade eco-social que construa um ambiente viável para as próximas gerações. Invocado sob tantos nomes, o Deus da vida, os nossos ancestrais, os/as mártires e todos os espíritos bons nos guiam e nos encorajam. Não nos dispersemos. É hora de apoio mútuo e cúmplice. As abelhas isoladas são frágeis, mas em enxame são fortes e conquistam respeito. O lutador uruguaio incansável José Mujica nos aponta o caminho ao ponderar que “os únicos derrotados são os que abaixam a cabeça, se resignam e desistem de lutar. Devemos ter a humildade de fazer autocrítica e aprender com os erros cometidos. Nenhuma derrota é absoluta e nenhuma vitória é absoluta”. É hora de autocrítica radical e consequente para conquistar outros horizontes alternativos. Portanto, é tempo de reflexão, de coragem, de criatividade e de refazer a esperança e a resistência. Esperança do verbo esperançar, que é ação, é movimento. Por amor aos/às explorados/as e discriminados/as, sigamos a luta por direitos, pois a luta gera a esperança.
30/10/2018.
Por frei Gilvander Moreira[1]
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
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